A lança que nos atravessa a alma é a mesma que empala nossa cultura
(Por Claudemir M Moreira)
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Em meio à névoa que cobria a cidade, nas madrugadas do rigoroso inverno de 1989, pude perceber o nascimento da decadência da música popular brasileira… os pensamentos vinham, como se assoprados em meus ouvidos, pelo gélido vento, que parecia contornar as esquinas e seguir os meus passos…
Eu andava quilômetros em meio às ruas desertas e praças vazias, com os fones fora dos ouvidos, o walkman preso à cintura, em volume máximo, vestindo apenas camiseta e minha jaqueta jeans de cor cinza e repleta de patchs e botons de bandas e símbolos de protestos –minha marca, por muitos anos – e a velha calça rasgada na altura dos joelhos, com um patch de um movimento antirracista da África do Sul, na altura da coxa esquerda… mas a calça era rasgada de velha, não era essa coisa desconexa proposital que vemos hoje… tinha um estilo casualmente natural, quase único, em meio a uma cultura fundamentalmente gaúcha, campeira…
O som dos fones, soltos ao redor do pescoço, ecoava baixinho em meia à úmida e incrivelmente fria noite lageana. O vento cortava feito navalhas afiadas e lancinava os cantos da boca, e ardia na pele por baixo dos tecidos puídos pelo tempo. Mas isso nunca me incomodou… era este, meu momento de pensar e captar as ideias dispersas, feito átomos, pelo ar frio e úmido, enquanto muitos dormiam.
“Por muitos buracos passei, muitos demônios enfrentei”, na fusão de rock e baião de “Valor”, da Plebe Rude, mesmo que baixinho, ia ganhando corpo e força, rasgando a névoa, em meio ao silêncio das noites vazias… e quase nada mais eu ouvia… às vezes um carro ou outro, que passava distante… ou o barulho assobiado do vento rompendo barreiras…
Os Inocentes recitavam, entre riffs fortes e ardentes: “Eu vi a face de Deus pichada no muro”… e eu via demônios escravizados pela sociedade cruzarem, ao longe, de cabeças baixas, ombros contraídos e mãos nos bolsos, voltando para suas casas, como que se arrastando em meio ao limbo do ódio que ardia em suas almas, provindo dos fortes detentores do venábulo do sistema, os fortes fracos de espírito…
“Penso que o tempo sempre quis me devorar”, na voz ácida e diretamente cortante de Rosália, das Mercenárias, por vezes, dentre tantas músicas fortes e de poesias provocativas e que nos faziam sair do confortável berço de adestramento em que o sistema nos mantinha e balançava-nos cuidadosa e sistematicamente, para mantermo-nos dormentes, letárgicos, ganhava vida em meio ao forte cheiro de morte que ameaçava nossa cultura…
E eu andava, noite após noite, madrugada a dentro… e os pensamentos críticos preenchiam, pouco a pouco, os espaços vazios ou esvaziados pela corrosiva insistência do conservantismo manipulador, que insistia em manter-nos calados, em afastar-nos do conhecimento amplo.
O sistema mefítico, enfraquecido pelas verdades, pelo conhecimento, por uma cultura livre e positivamente invasiva, por poesias cruas e inquietantes, foi o mesmo que abriu as portas para essa enxurrada fétida que invade nossos ouvidos e nossa mente, feito vermes parasitas…
No momento em que o rock nacional deixou as letras bobinhas e inocentes e partiu para o ataque poético, para o enredo rico em informações, gerando interesse na busca pelo conhecimento e despertando o pensamento crítico, foi prontamente estigmatizado e deliberadamente suprimido.
A morte da cultura musical versada, erudita, deu espaço ao que hoje enche nossos lares de inépcia e estupidez, trazido pelas ondas de rádios e TVs ou ressoado insistentemente pelos nossos aparelhos celulares…
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