Morri
(Um conto de Cláudio Loes)
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A chuva caia fina, salpicando a terra esturricada. O relógio do tempo parou meu coração, num desafio de milésimos de segundo. Tudo parou.
Esse lugar frequentado por não sei quanto tempo, era muito limpo, tudo era branco e passavam fantasmas desconhecidos o tempo todo. Um apito aqui e outro ali. Queria levantar o dedo médio, mas nem isso consegui. Devo ter morrido.
A dama morte veio logo ficar ao meu lado e reclamou. Disse que deveria ter aceitado seu convite no último domingo, véspera de feriado, muitas pessoas para o velório. Enfim, não sei por que morri hoje.
Estranha esta situação, a morte ao meu lado, vestida de preto, parece mais um cavaleiro fantasma. Diz que precisa cobrir suas vestes porque a chuva pode desbotar tudo. Não sabia que o além era refém da chuva. Deve ser porque água é vida, e aí seria o fim da morte.
Estão trazendo um caixão reluzente e estou na luminária assistindo. Vieram duas mulheres, belíssimas. Uma posso reconhecer, é a poetisa fantasma, mais linda do que nos poemas que rabisquei um dia. Ela sorri e acena para mim. A morte parece não me ver aqui em cima e não estou com medo de cair.
A outra é esplendorosa, uma deusa do Olimpo. Poderia dizer que é a deusa Vênus. Nem seria merecedor de tanto, em vida sempre sonhei muito e realizei pouco. Elas me convidam para descer. Penso e estou ao lado delas. Nem sei o que fazer, todos esses anos de solidão em versos deixaram tristes recordações. Amores que morreram, amores que se foram sem um adeus.
A morte acaba de fazer seu trabalho, coloca o corpo inerte no caixão reluzente e diz “esse foi o último, espero poder tirar umas férias no inferno para me refazer”. Não entendi nada e as duas mulheres ao meu lado sorriram felizes. Pergunto: onde estou? O que está acontecendo? Elas sorriem e nada dizem.
Resolvo ir ao lado do caixão, está sendo colocado num vazio existencial. Fico ao lado e as duas mulheres pegam meus braços. Se entendi, querem que vá com elas. Fico apaixonadamente triste porque não mais verei meu corpo, uma sensação de profundo vazio me atravessa de alto a baixo.
Vou com elas, e chegamos numa estrada. Do outro lado avisto uma casa caindo aos pedaços. Elas deixam livres meus braços. Desconfio que devo atravessar e ver o que tem lá. Coloco um pé na estrada que vou atravessar e ouço a buzina de uma bicicleta. Na minha direção vem uma menina delicada pedalando sua bicicleta. Flexiono as pernas para ficar mais ou menos na mesma altura dos olhos dela. Ela para e pergunta “por que você fez isso?”
Sempre acreditei que não se deve exigir do outro aquilo que lhe é impossível, isto é, se eu não puder fazê-lo não posso exigir. Ela deu uma grande gargalhada e disse “mais um para nós, gostei de ti”. Ela continuou pedalando e foi embora.
Continuei atravessando e chegando no portão ele se abriu, continuei pelo acesso até a casa. Na casa as portas se abriram, entrei já não desconfiando de mais nada. Para quem morreu nada mais pode ser infortúnio maior.
O interior da casa era horroroso, tudo em xadrez preto e branco. Uma voz ecoante disse “podes entrar se assim o quiseres, esse lugar é todo teu”. Pensei, que lugar terrível, tudo somente com duas opções. Isso deve ser o inferno, pensei mais uma vez.
A voz, mais estridente perguntou “tens algum pedido?”. Fiquei calado por um momento e de novo pediria algo para suavizar esse terror dicotômico. Seria possível misturar um pouco o preto com o branco? Mesmo não sendo colorido, tons de preto, ou tons de branco seriam melhores. Fechei os olhos e fiquei em silêncio.
Quando abri os olhos estava novamente na companhia das duas mulheres que me trouxeram até aqui. Estranho, eu gostaria de saber como foi o velório do meu corpo que morreu. Elas olharam para mim e pela primeira vez falaram “o senhor do tempo gostou de ti e vamos acompanhar tua estada aqui”.
Continuei não entendendo nada. Elas ficaram sorrindo e me abraçaram. Seguimos alguns passos e novamente ouvi o sinal da bicicleta. Aquele trim-trim reconhecido em qualquer lugar da existência. Quando virei para trás era uma deusa pedalando. Ela parou e ofereceu uma carona, disse que me levaria para conhecer esse espaço durante minha existência.
Fiquei estático, todos os sonhos concentrados naquele olhar, naquele corpo esteticamente lindo. Aceitei a oferta e me sentei no banco do carona apertando a cintura dela delicadamente para não cair. Ela começou a pedalar e as brumas foram ficando mais densas.
Tron-tron-tron, toca o relógio de todos os dias. Hora de acordar, saber que a vida é para os fortes e que os sonhos maravilhosos são só sonhos, desejos que tornam eterna a existência mundana.
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