GeralVia Poiesis

Não há nova ordem… e ela, sim, é velha demais

(Um conto de Claudemir M Moreira)

.

Rud chegou em casa mais cedo que o habitual, para um dia de fim de semana… ainda não era meia noite, e o silêncio da madrugada, normal para sua rotina, ainda se via quebrado pelos sons insuportáveis da vida humana.

Ao subir as escadas, pode ouvir a briga do casal do apartamento de baixo e o som alto de um filme qualquer, que o vizinho, ao lado, assistia.

O barulho das ruas era ouvido com exatidão, do terceiro andar em que morava. Muitos carros, música muito ruim que vibrava até as esquadrias das janelas; as pessoas falando ou rindo muito alto… o latido dos cães e o namoro alucinado dos gatos… e algum imbecil pulando e dando tapas nas placas e chutes nas lixeiras.

Ele chegou a ir na sacada, mas tudo era ainda pior.

Foi até a cozinha… não havia nada na geladeira, além de água, um ou dois potes – que na hora, nem teve coragem de abrir – e alguns ovos… no congelador, somente gelo… puxou a tomada da parede… no momento, não precisava da geladeira.

No balcão, ao lado da pia, havia uma garrafa de cachaça, ainda fechada, e um vinho de boa marca, deitado sobre um suporte… um presente de um colega de trabalho, guardada para alguma ocasião especial.

Rud ficou olhando pela janela da cozinha, por um bom tempo… e não havia nada lá fora… tudo o que era possível enxergar desta janela eram algumas poucas paredes erguidas, duas pilhas de tijolos, algumas ferragens e o mato crescendo em uma construção, há anos abandonada; mas o barulho, lá fora, era o mesmo! Então, virou-se para as garrafas… pegou a cachaça, e até abriu; mas voltou-se para o vinho… afinal, sabia que jamais viveria um momento especial. Foi quando então se deu conta de que também não tinha um saca-rolhas… até isso Marlene havia levado…

Por mais de 20 minutos, ficou sentado na sala, com a garrafa de vinho na mão, olhando para o rótulo. Uma freada brusca, seguida de buzinas, lá fora, tirou-o do transe. Rud levantou-se, voltou à cozinha, pegou uma chave de fendas que havia visto jogada em um canto, pelo chão, junto de alguns parafusos… empurrou a maldita rolha, aos pedaços, para dentro da garrafa e voltou para sala, com o único copo que encontrou no armário.

Uma ocasião especial pode ter sido um único dia, perdido no passado.

O silêncio da madrugada era tudo o queria, mas o apartamento vazio, assim como a alma, ecoava algo entre a angústia e o ódio, entre mágoa e desespero…

O vinho era, realmente, muito bom… mas a vida, muito ruim…

Um dia, Rud teve a sensação de que era feliz… mas a vida deu-lhe um tapa, e ele acordou.

Na vida, tudo o que temos é pouco, pois o que temos, não é mais que o desprezível bem material que o mundo fez-nos acreditar de que precisávamos.

Temos raras “chances” de fugir deste sistema… mas Rud não teve a sua… a ordem foi toda a desordem possível. O tempo foi implacável demais…

Os dias passam lentos para aquele que sofre… e Rud nunca teve um dia rápido, desde a infância. Estudou em boas escolas, mas era magro demais, branco demais e cheio de sardas… era fraco e tímido. Era motivo de chacotas e apanhava todos os dias… nem a menina mais meiga tinha pena de sua dor, e ela ria de seu sofrimento, dia após dia. Rud cresceu amargo. Seus pais viajavam muito, a trabalho… mas quando estavam presentes, também não mudava muita coisa.

Rud viajou para muitos lugares, conheceu outras culturas, teve uma vida de farturas; mas o material não cura as chagas da alma…

Rud estudou outras línguas e teve aulas de música. Teve boa formação intelectual, fez cursos fora do país… mas isso é apenas mecanismo de oportunidades, não são “chances”… (e é assim que o sistema nos engole!). E Rud fora simplesmente dragado, aprisionado no coração flamejante do sistema… escravo de si mesmo. Trabalhou durante um bom tempo e pode comprar um bom carro, o apartamento onde mora… o terreno lá embaixo, visto pela janela da cozinha. É filho único, mas, depois de formado, não quis receber ajuda dos pais. Foi morar longe, do outro lado do país, e há muitos anos não vê ninguém de sua família.

As chagas da alma geram cicatrizes terríveis…

Rud conheceu Marlene, assim que chegou na cidade… eles trabalhavam na mesma empresa. Saíram pra jantar por duas ou três vezes e logo resolveram morar juntos… Isso foi há seis ou sete anos… ele nem sabe muito bem… os homens não são muito bons com datas. Há quatro dias, Marlene simplesmente se foi… abandonou o emprego, levou tudo o que pode carregar, de dentro de casa, e ninguém sabe dela. Rud voltara de uma viagem de negócios… e, até agora, ele não entendeu nada…

As cicatrizes da alma, por vezes, transparecem nas palavras que saem de nossas bocas…

O sistema não perdoa… é a ordem que nos cobre com o manto negro que impede de enxergarmos o mundo real.

(Posso estar enganado de muitas outras coisas, mas tenho certeza: a ordem não é vida!)

Passamos o tempo, dia após dia, arrastando correntes, catando as migalhas que nos jogam, lá de cima…

Movemos as engrenagens que sustentam os pilares de nosso cativeiro e firmamos os grampos nas telas que nos impedem de cruzar as fronteiras entre o irreal vivido e o real suprimido… e, muitas vezes, até reverenciamos.

Rud viveu suas chagas e acostumou-se a elas… para ele, a dor, era parte da vida.

O silêncio da madrugada demora a chegar… o vinho já está no fim… o casal do apartamento de baixo ainda discute, os carros cruzam rápido pelas ruas, os cães latem e uivam… e os gatos parecem, ou crianças chorando, ou mulheres em desespero. O silêncio tarda…  mas, por vezes, nada pode acalentar a alma…

E ninguém viu Rud, no domingo… e ele não apareceu na reunião, na segunda-feira…

.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *