Cultura

Tragam as cinzas de D. João!

Por Sílvio Travagli

Com o título acima, Pedro Leite (*) publicou engenhosa crônica no extinto mensário paulista “Correio do Livro”, edição de abril de 1972, número 56, página 2. Na época,  já se preparavam os festejos comemorativos do sesquicentenário de nossa Independência e o assunto era o translado, em definitivo para o Brasil, dos restos mortais de D. Pedro I (exceto seu coração), os quais hoje permanecem sepultados no Monumento a Independência, no Ipiranga, em São Paulo, SP.

O cronista, com sua verve admirável, entendia que, mais do que as do filho, deveriam ser reclamadas pelo Brasil as “cinzas” do pai, D. João VI — este sim, um estadista de verdade! O filho, não, que este era um indeciso,  um homem de duas pátrias, gestor ruim, político simplório, mau guerreiro — sempre conduzido pelo pai e que, a final, acabou não sabendo manter e tampouco acrescentar a herança paterna. Traçando o paralelo entre as personalidades de pai e filho, Pedro Leite é incisivo: D. João VI, o que se esbaldava na comilança de penosas (assadas ou ao molho pardo), foi realmente o planejador do Brasil como Nação! Foi um imenso estrategista. Foi quem semeou, desde 1808, nossa independência.  Quer dizer: o maior estadista brasileiro foi um português, o pai.

Tudo bem, D. Pedro deu o grito da Independência e mostrou senso de oportunidade histórica, observa Pedro Leite. Merece reverências por isso, é claro, mas não engrandeceu o patrimônio recebido. Pelo contrário, deixou escapulir o Uruguai, que era parte da herança do pai… Sem falar do que deixou escapar com o próprio grito, que, segundo as más línguas da época, teria sido dado em condições intestinais bem adversas!  Como imperador do Brasil, passou a dedicar grande parte do tempo à sua amante fixa, D. Domitila, a quem, com frequência, enviava bilhetes fogosos, assinando quase sempre como “seu fiel, constante, desvelado, agradecido, verdadeiro e muito seu Amante, O Demonão P.” Num desses bilhetes, a cujo teor tive  acesso, ele  conta a Domitila que sua mulher quase o flagrara a escrever a furtiva mensagem: “P.S. A Imperatriz ia me agarrando a escrever; mas me valeram as suas orações (…) Até à noite meu bem…” (não datado).

Mas voltando à saborosa crônica de Pedro Leite, passados mais de 50 anos, ela volta a ser de uma oportunidade ímpar. Pois é, perdemos, de novo,  a chance de reclamar as cinzas de D. João VI. Em vez disso, pedimos emprestado a Portugal o coração  em conserva do D. Pedro.  Que coisa mais mórbida não poderia ser! Até porque, penso eu, esse coração que não bate nem deve estar assim tão bem conservado…E dizem que, ainda por cima, custou caro a nosso Erário a excursão festiva dessa mórbida relíquia.

Li por aí que a ideia de jerico de trazer esse órgão meio apodrecido teria sido da médica Nise Yamaguchi, aquela que virou consultora do atual presidente e que defendia a cloroquina para tratamento de COVID. Aquela dos cabelos bem pretos e dos penteados esquisitos!

Portanto, vamos ver se por algum milagre a gente consegue mobilizar a opinião pública no sentido de o Brasil reclamar os despojos do valoroso D. João VI. A hora para começar é agora, embora seja tarde para trazê-los a tempo das comemorações do bicentenário. O engajamento para fazermos justiça ao velho monarca, o pai, teria a vantagem de afastar o nefasto  perigo de uma outra eventual ideia daquela doutora, ou de algum outro aventureiro.

É que, como já devem ter ouvido falar, vem passando de mãos em mãos, desde 1821, uma outra relíquia, ainda mais repulsiva, de um outro imperador.  Trata-se do órgão viril do grande Napoleão, que, para sua felicidade, não teria sido extirpado com ele em vida! Este não está em conserva, mas ressecado e guardado em uma caixinha de couro. Já andou por seca e meca e olivais de Santarém: Estados Unidos, Grã-Bretanha, França. Hoje pertence à filha de um falecido urologista americano… Quem viu a coisa  diz que parece uma enguia mumificada e, no estado e tamanho em que se encontra, não faria jus à grandeza do imperador francês… Também não se pode ter absoluta certeza de que seja genuíno, embora alguns especialistas digam que pode ser…

Já imaginaram se a doutora Nise resolve aconselhar o presidente a trazer esse troço pra cá ? E vejam que até se poderia brandir este argumento favorável: ora, se não fosse pela sanha conquistadora do grande Napoleão, sequer a Família Real teria fugido de Portugal. Ou seja, nem D. João VI, nem seu primogênito, o vulgo Demonão P., teriam vindo acá! E aí,  babau o tal do grito em 7 de setembro…

Portanto, antes que se dê trela a outra asinina ideia do tipo, que reclamemos as cinzas de D. João VI, como muito bem defendeu o genial cronista Pedro Leite, em abril de 1972. Conclui o cronista: que se faça justiça ao Pai  — “o que liberou os acontecimentos que fariam o Brasil tão difícil, mas tão possível, que ainda estamos procurando fazer. As cinzas de D. João marcariam melhor a certidão de nascimento nacional.”

(*) Pedro Leite é um dos heterônimos do grande jornalista, escritor e advogado (entre muitas outras coisas)  Mario Mazzei Guimarães, que fez história na “Folha de S. Paulo”, na década de 1950. Para muitos de seus contemporâneos, Mazzei foi a ponta de lança de um novo jornalismo, e em grande parte, responsável pelo avanço da “Folha” nos anos 50. Ali, além de diretor de redação, manteve coluna diária (“O Sal de cada Dia”), de 1945 a 1960, escrevendo sobre política e outras coisas sérias. Prêmio Esso de Jornalismo em 1959, era especializado em assuntos de economia agrícola. Foi um dos pioneiros do jornalismo rural de substância, tendo administrado a Companhia Editora Joruês, responsável pelas edições do quinzenário “Correio Agro-Pecuário” e do mensário “Correio do Livro”. Foi membro da Academia Paulista de Jornalismo e é autor do livro “Memórias da Roça – Gente que fez História”, editado em 2003 (Editora Agronômica Ceres Ltda.) Ainda adolescente, esteve na linha de frente, como soldado paulista, na Revolução Constitucionalista de 1932. Teve uma longa, brilhante e fecunda jornada de vida, vindo a falecer em 12 de dezembro de 2012, aos 98 anos.