Um dia esta dor vai nos ser útil
- Dom Edgar Ertl
O Cardeal português José Tolentino Mendonça escreveu um inspirado artigo sobre o momento que estamos vivendo desde o mês de março de 2020. Neste artigo partilho com nossos leitores, na semana em que passamos de meio milhão de brasileiros mortos vítimas da Covid-19 e em crescimento descontrolado no Estado do Paraná. “Não saímos ainda da pandemia, a verdade é essa. E como não a podemos remover da história concreta deste nosso presente com a facilidade que desejaríamos, a tentação atual é a de a removermos dentro de nós, ensaiando uma espécie de negação”, avalia o cardeal.
Não se trata de negar os fatos ou de distorcer os números. Trata-se, sim, de uma operação que pode parecer de pura sobrevivência interior: expostos por um tempo longo a uma dura prova, a dada altura preferimos simplesmente bloquear o impacto da situação externa no nosso mundo emocional. É um mecanismo recorrente de distanciamento do real, que permite certo alívio. Não queremos ouvir falar do problema ou tentamos reorientar a ameaça que ele representa, convencendo-nos que os grupos de risco são sempre os outros. Em parte, foi isso que aconteceu quando se dizia que as pessoas de risco eram unicamente os idosos ou que existiam regiões mais imunes do que outras, profetiza o autor. Reitero que hoje, em junho de 2021, os fatos são outros! Todos estamos no grupo de risco.
As experiências dolorosas podem tornar-se oportunidades para redescobrir que a vulnerabilidade também nos ensina coisas de que precisamos. Mas é necessário que não enxotemos depressa demais essas experiências para debaixo do tapete. Mais do que fugas precisamos de resiliência, conscientes da gravidade desta hora. Mais do que nos precipitarmos numa mudança de assunto (porque coletivamente chegamos a uma exaustão psíquica…), seria importante elaborá-lo em profundidade, e isso só acontece se tivermos a coragem de o fazer emergir. Mais do que nos escondermos uns dos outros, apostados numa gestão individualista da questão, torna-se indispensável que nos encontremos num discurso de comunidade.
Um mosaico epidêmico
Segundo o cardeal português a pandemia não tem só vítimas diretas. A quantidade de vítimas secundárias não cessa de crescer numa crise que não é apenas sanitária, mas também econômica, social e, agrego que no Brasil a crise é política, crise de gestão. É cada vez mais manifesto que a pandemia nos empobreceu terrivelmente. A fome está de volta e insinua-se como um fantasma junto de pessoas e famílias que, há apenas seis meses, não se pensariam jamais em situação semelhante. Os dados dos bancos alimentares, das Cáritas e das muitas associações que estão no terreno distribuindo bens de primeira necessidade, são clamorosos. Ouvi recentemente aos responsáveis de uma delas o seguinte testemunho: As nossas previsões iniciais é que este socorro alimentar seria necessário até finais de abril ou até maio no máximo, e que os números começariam pouco a pouco a baixar. Cresceram não só os indicadores de pobreza relativa, mas também os de pobreza absoluta. Jovens e idosos, desempregados e trabalhadores precários, nacionais e imigrantes deixaram de poder fazer face às suas despesas essenciais.
Finaliza Dom Tolentino dizendo que a pergunta mais urgente não é quanto tempo precisamos (um ano, dois anos, quatro anos?) para voltar à situação em que estávamos. A pergunta mais premente é: como é que esta dor nos pode ser útil? E a resposta é inequívoca: se redescobrirmos o sentido do próximo. Se esta aluvião nos ensinar a nadar no campo da atenção solidária à vida frágil, tal como se declina em nós e nos outros. Termino outra vez com a pergunta que nos vem do título do artigo do cardeal: Um dia esta dor advinda da pandemia vai nos ser útil? Então, quais são nossas respostas às dores geradas pela pandemia?