A CRIANÇA PERDIDA
(Uma crônica de Cleusa Piovesan)
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Todas as crianças são poetas, poetas da inocência, da espontaneidade, porque têm a liberdade criadora, a fertilidade na imaginação, o poder de fantasiar. De suas bocas as palavras saem livremente, sem planejar rimas, estrofes, sílabas poéticas, tudo o que dizem provoca encantamento, está recheado e revestido de poesia ou de arte poética.
Aí, vem um adulto e tenta moldá-las ao sistema, para que sigam as regras do comportamento em sociedade e mata a originalidade e tudo o que elas poderiam vir a ser. São ainda crianças! Deixá-las vivenciar as descobertas é mais importante do que moldá-las a um sistema que lhes rouba a infância. Note-se que não estou falando da falta de limites em relação às normas de comportamento em sociedade; estou falando de liberdade criadora, capacidade de desenvolver a cognição, usando o que, nessa fase, elas têm de melhor: a imaginação!
As crianças são seres dotados de capacidade criadora, castrada por uma educação manipuladora, que as obriga a se adequarem para serem aceitas, em uma sociedade não isenta de bitolação ou de preconceito. E elas perdem sua essência, juntamente, com a consciência e deixam-se adestrar. Dóceis animais racionais que se moldam e perdem suas identidades, para atender às exigências de um sistema educacional, ainda centrado na disciplina e não na formação humanitária.
E, assim, crianças dóceis tornam-se adultos infelizes, incapazes de deixar fluir o espírito de criança que as acompanha pela vida toda, e que se esconde sob uma máscara de hipocrisia, de culto ao consumo e à aparência, aniquilando qualquer resquício de poesia que possa ter existido dentro delas. Tornam-se adultos problemáticos, por não filtrarem suas emoções, nem administrarem seus conflitos, pessoais e interpessoais.
A vida torna-se árdua, cruel, opressora. Perguntemos a um adulto: quando ainda consegue ouvir o mavioso cantar do pardal, sem pensar no estrago que ele faz em seu telhado; quem pensa no berro do animal que agoniza, enquanto saboreia o churrasco; quem lembra da liberdade de uma pelada no campinho, sem pensar na sujeira que ficou na roupa ou na bronca da mãe; quem vê a miséria social no olhar da criança pedindo no sinal, enquanto, orgulhoso/a, fecha os olhos e escuta o jogo de futebol no rádio? Dá para imaginar que coisas tão simples proporcionassem tanto prazer?
Nada mais existe daquela criança que um dia foi feliz com os pequenos prazeres da vida, por isso, é necessário revestir-se de poesia e poetizar a vida, não somente registrar impressões sobre o que é belo, mas ser voz a denunciar barbáries, a promover reflexões, a incitar discussões, a desatrofiar o pensamento mesquinho da sociedade capitalista, que não vive a essência do “ser”, apenas a ganância do “ter”. E nessa ilusão do “ter”, tem-se um sem número de pessoas ensimesmadas, individualistas, que vivem os entraves de uma existência vazia.
As pessoas já não veem a beleza da simplicidade, e alimentam os consultórios psiquiátricos à procura de uma droga mágica que as faça recuperar o sentido da vida. Mas, que sentido, se ele se perdeu na infância? Que sentido, se na vida adulta, deixou-se de observar os sinais que as identificam? Que sentido, se os sentimentos se modificaram e a beleza de um pássaro, ou de uma flor, já não despertam prazer? Onde encontrar a criança que morreu dentro de cada um e dar-lhe um novo ânimo para viver?
A poesia está em toda parte e conduz o olhar do observador distraído, inocente, de mente e coração livres, para apreciá-la em sua grandeza ou em suas minúcias. Mas, aquele que procura revestir-se de seu encantamento com o olhar do critério, da dúvida, da crítica fiel, de sua razão de ser, ficará cego para entender que somente sentimentos espontâneos é que farão com que a poesia da vida seja recriada.
Libertar a criança que ficou perdida em uma infância pode ser a chave para um mundo mais humanizado, permeado da poesia que nos cerca; basta apenas atentar-se aos detalhes, mirando os horizontes!