A CHIBATA DO TEMPO
(Um conto de Claudemir M. Moreira)
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Quando nasci, o ano da morte do filho* do lixeiro e da empregada doméstica, que, com sua genialidade, por volta de 1929, respondera, em versos, a uma questão de uma prova de Física, pude sentir todo o ódio do mundo. Soube disso, obviamente, muitos anos depois, mas sei o que senti, pois esta seria a carga que me deprimiria por toda minha vida. Fui uma criança de poucos sorrisos.
Quando se tem cinco anos de idade, o mundo é muito estranho… e o prazer e o medo andam lado a lado. Uma mudança nunca é confortável… e quando se é criança demais para entender os porquês, e o sofrimento – e a angústia – e a grande preocupação dos pais sai, feito suor, pelos poros, o trauma por medo é carregado feito chumbo… torna-se um peso para a vida toda, que vez por outra vem à tona. Eu lembro exatamente do dia em que chegamos àquela vila… a madrugada era fria… não sei se para o corpo… ou para a alma.
O amor havia, mas, por longos anos, fora suprimido pelo mal. Este, sem piedade e sem qualquer remorso, castigou-nos por longos e penosos anos… dias de amarguras, de tamanha carga negativa, que era possível senti-la no ar. Algo tão denso e viscoso que uma navalha poderia cortá-lo; mas a regeneração do mal era certa. Um verdadeiro choque na alma, que, aos conscientes, não seria apaziguado tão cedo.
O amor, sim, havia… e até salvou minha vida quando a medicina dissera que eu estaria mentindo; “pura manha” foi o que ouvi, ao longe… foi quando, ainda aos sete anos, descobri o que era arrogância.
Vivi dias maravilhosos também… muitos! Havia uma liberdade livre das atribuições ou atribulações do medo, uma animosidade suprimida pela inocência. Mas os dias sublimes eram recheados de subtâneas e injustificáveis vergastadas que não habitavam somente os pesadelos. E os pesadelos eram recorrentes… e vivos!
O amor, quase que compulsoriamente, havia; mas não havia tempo de expressá-lo… os dias eram difíceis… muitos encargos diários que não cabiam em um só dia. Os sentimentos foram suprimidos pelas dificuldades cotidianas. Quando não se vence o sofrimento – as angústias – o coração empedra-se. É acrimonioso o coração de quem pena.
E a vida seguia seu curso… e os pedaços de mim perderam-se pelo caminho… e pelo tempo… e nunca mais eu pude resgatá-los.
Como os anos quebram-se, feito vidro ao cair ao chão!
O tic-tac do relógio – coisa que não existe mais na vida das crianças de hoje – incomodava-me muito, e não adiantava em nada pará-lo… o tempo não obedecia às minhas vontades, o tempo empurrava-me com força.
O ano era 1979… e aqui, eu desceria um degrau em minha relação social. Uma outra mudança repentina doeu muito, e muito ficaria, definitivamente, para trás. O choque cultural, as malícias que eu não conhecia; o ludíbrio moral… a falta de tudo que não coube na mudança, e jamais caberia… o âmago; conquista de um espaço abstrato entre a dor da lapada e a liberdade da inocência. Até esse momento, eu precisava apenas ser eu. Esse era o único valor que realmente importava… tudo, e todo o resto fora da essência do ser, eram apenas futilidades, mundanas demais para serem relevadas. E agora, tudo mudou. O avesso da alma desnuda…
Entendi que estaria sozinho… a sensação daquele momento poderia equivaler-se a estar trancado em um quarto escuro com um tigre…. e eu não tinha escolha.
O amor, à distância, havia; mas não se podia sequer ouvi-lo. Eu não estava só, mas éramos três crianças, inconscienciosamente aos cuidados de outra. Cem quilômetros foram estabelecidos para que pudéssemos estudar… e não havia nenhuma forma de contato. Viver sozinhos foi a única opção de “vida melhor”… um quase abandono obrigatório por circunstância única. É difícil compreender, mas fora um desarrimo por amor. Expressão única, personificação abstrata. Sim ou não, amor deve ser o que vocês acreditam ser Deus. Eu, no entanto, não compreendo amor, tampouco Deus. Eu aprendi a olhar o mundo por mais de duas perspectivas, mas a superficialidade eu via em todos os outros, para onde quer que eu olhasse.
Só uma coisa mudou, naquele momento, para melhor… e, por algum tempo, eu sequer percebi. Foi aí que aprendi que o amor desfere chibatadas, com maestria.
E eu odiava ouvir a Rita Lee… “nas duas faces de Eva, a bela e a fera”… esse era o sinal de que chegara a hora de ir para a escola. Naquele momento, a escola não era um lugar confortável para mim… lá eu apanhei, fui humilhado, roubado… fui excluído por ser pobre, rejeitado por ser forasteiro; ninguém sabia da minha origem, nem conhecia minha família. Para eles eu não tinha nada a oferecer e, obviamente, isso incluía nada mais que matéria.
A escola era pública, mas havia uma divisão de classes absurda e eu estava exatamente no meio da balança… rejeitado, por um lado, por não ser tão pobre, e por outro, por ser pobre demais. A timidez, naquele momento, não me ajudava em nada… e a introversão, muito menos.
Hoje, até agradeço… talvez, tornar-me-ia apenas mais um ser volúvel, persuadível, de extrema futilidade. Afinal, é caindo que se aprende andar… as dificuldades trazem valor à vida. Agora, entendo a efemeridade daquele tapa social e o bem que a dor trouxe para a formação de minha personalidade… mas, à época, um ano era interminável… e a dor era intensa.
Muita coisa rolou, durante seis anos… o bem e o mal trilharam abraçados… amantes, absurdamente, inseparáveis. Descobri que o bem é – quase sempre – frágil… e o mal – sempre – a personificação do próprio Mal.
1984 foi um ano limítrofe, e eu sequer havia lido Orwell… e uma sensação anárquica fervilhava dentro do meu eu.
No ano anterior, muita coisa anunciava o que viria de mim… eu estava cansado. As chibatas do tempo, as feridas abertas na alma, as máculas de uma vida inteira, são as forjas que moldam a personalidade… efígie gravada na consciência.
A virada de ano trouxe, com apenas mais uma data, um novo eu. A timidez e a introversão continuavam a existir, como existem até os dias de hoje, mas eu as esmagara debaixo de toneladas de ódio, jogadas no porão da mente. Mesmo subvertendo meu próprio ser, jamais fui falso, sempre fui verdadeiro, apenas havia suprimido angústias e medos.
Nesse momento, descobri que eu poderia ter algo a oferecer… e percebi que a cultura e o conhecimento poderiam ser armas para conquistar o meu espaço, mesmo na mais leviana sociedade… e que isto teria um valor inestimável, mas que ninguém – jamais – poderia roubar-me.
Ouço vozes o tempo todo… não é insanidade! São lampejos da razão… centelhas de uma vida inteira, plasmada no que realmente sou…
A dor deu lugar ao juízo… as feridas da alma, transmutadas em pura lucidez; a prudência é a mão em meu peito… que agora, empurra-me contra o tempo.
…
* Carlos Marighella nasceu em Salvador, em 1911; filho de Augusto Marighella, um imigrante italiano, e Maria Rita do Nascimento, negra e filha de escravos. Antes de tudo, e – talvez – mais importante que quaisquer de suas ações, Marighella era um grande poeta. A poesia é a força motriz da consciência ativa, base de qualquer revolução. Foi preso por uma de suas poesias. Foi torturado por pensar. Marighella foi morto a tiros, em uma emboscada, no dia 04 de novembro de 1969. Se foi um herói ou um vilão, não cabe a mim julgar… enfim, essa não é a história de Carlos Marighella… é apenas uma representação do ódio que pairava no ar. Sete dias depois, numa terça-feira, um fórceps trazia ao mundo mais um “pensador inconformado”… essa é a minha história!