AFIRMAR A CULTURA SOLIDÁRIA
A CULTURA DA SOLIDARIEDADE PODERÁ VENCER A CULTURA DO ÓDIO, DO EGOÍSMO INDIVIDUALISTA E UTILITÁRIO.
A atual crise global é também uma crise civilizacional, mas não ocasionada pela pandemia. Na realidade, já existia antes da crise sanitária que já vitimou mais de cinco milhões de pessoas, em todo o mundo. A pandemia, de algum modo, está levando as pessoas a reverem conceitos e a mudanças de atitudes, a se tornarem inclusive mais flexíveis, mais receptivas ao outro, mais solidárias. Mas há também os que se fecham em guetos ideológicos, em redomas rígidas formando muros a sua volta, tornando-se indiferentes à dor alheia e individualistas. Ainda no começo da pandemia, em uma entrevista, o papa Francisco destacou: “Está surgindo um drama, não sei se subterrâneo, porém dissimulado de nossas sociedades, pois às vezes são sociedades hipócritas e inconscientes. (…) Os aproveitadores veem comércio em tudo, no mundo tão triste das mulheres maltratadas, dos sem-teto. Eles têm uma esperança muito pequena, não tem onde se apoiar. Isso é muito triste, porém ao mesmo tempo nos damos conta de que existem”. E acrescentou; “Eu tenho esperança na humanidade, nos homens e nas mulheres, tenho esperança nos povos. Tenho muita esperança. Os povos levarão ensinamentos desta crise para repensarem suas vidas. Vamos sair melhores, em menor número, claro. Muitos ficam pelo caminho que é duro. Porém, tenho fé: vamos sair melhores”. Por isso o papa defende a cultura da solidariedade, para que a atenção aos mais desassistidos, em todos os aspectos, seja possível, em meio aos novos desafios emergentes.
O fato é que uma nova sociedade parece surgir, sem que saibamos, ao certo, como vamos lidar com todas as profundas transformações que estão ocorrendo, em todos os campos da sociedade. O teletrabalho (que já existia antes) vai se impondo, mas não deve substituir todas as formas de trabalho existentes. Preocupa a perda de postos de trabalho, especialmente pelo avanço da inteligência artificial. Preocupam os custos sociais da pandemia. “Uma epidemia diz mais sobre nós mesmos do que sobre a própria doença”, afirma a pesquisadora Denise Pimenta, doutora em Antropologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Não se trata de uma questão de saúde, mas também de uma questão social. Na Educação, por exemplo, ela explica: “São as pessoas que, quando as aulas forem canceladas, vão ficar em casa para cuidar das crianças. É uma carga emocional, psíquica e física colocada nas mulheres, principalmente as mais pobres”. Quanto ao isolamento e ao crescimento da violência doméstica, ela ainda observa: “Nós vivemos numa estrutura de desigualdade e violência contra a mulher. Se passamos por um momento em que as famílias estão confinadas na mesma casa, no mesmo apartamento, essa violência também cresce.” E acrescenta: “No Brasil, a epidemia chega num momento em que o sistema público de saúde vem sendo desmantelado, assim como a previdência social. Ela vai descortinando como essas políticas neoliberais, de privatização, terceirização, cortar direitos dos trabalhadores, podem prejudicar seriamente uma população”.
Mesmo em meio a tudo isso, o papa Francisco reforça que é preciso enfrentar a crise com a disposição de buscar o melhor, renovados pela esperança: “sempre há de manter uma janela aberta”. Ainda no começo da pandemia, afirmou: “Deveremos olhar ainda mais para as raízes: os avôs, as avós, os idosos. Construir uma verdadeira fraternidade entre nós. Fazer memória desta difícil experiência vivida todos juntos. E seguir em frente com esperança, que nunca decepciona. Essas serão as palavras-chave para recomeçar: raízes, memória, fraternidade e esperança”.
Valmor Bolan é Doutor em Sociologia. Professor da Unisa. Ex-reitor e Dirigente (hoje membro honorário) do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras. Pós-graduado (em Gestão Universitária pela OUI-Organização Universitária Interamericana) com sede em Montreal-Canadá.