A CRENDICE E A EVOLUÇÃO NA CIÊNCIA MÉDICA
Oribasius, um médico e escritor grego, que viveu por volta do ano 320 a 400 d.C., deixou-nos uma importante obra, onde revisa e preserva escrituras de autores médicos e estudiosos da área, contemporâneos ou de até 500 ou 600 a.C., muito anteriores a ele, trazendo informações valiosas de doenças e seus tratamentos, em épocas onde a ciência pouco conhecia sobre elas. Dos cerca de 72 livros desta coleção, apenas 25 estão inteiros, mas neles constam importantes informações históricas sobre medicina e farmacêutica de um período de quase mil anos.
Galeno (129 – 217 d.C.), reconhecido como o mais importante médico desta época, realizou diversos estudos que influenciaram a ciência médica por mais de um milênio. Foi Galeno quem propôs, pela primeira vez, que o corpo seria controlado pelo cérebro. Realizou diversos estudos fisiológicos e anatômicos, realizando diversas descobertas até então ignoradas, como as funções cardíaca, circulatória, renal e hepática. Foi também pioneiro em técnica cirúrgica para correção de catarata, tão ousada para seu tempo, que só fora usada por outros médicos, novamente, após alguns séculos.
Neste período, na sociedade romana, os conhecimentos eram muito empíricos e, obviamente, faltava-lhes meios, técnicas e equipamentos para seus estudos. As técnicas farmacológicas eram rudimentares e baseadas em observância natural e deduções puramente experimentais. Usava-se muito dos minerais. O uso de colares e medalhões de algumas pedras, rochas e metais com a finalidade terapêutica ou preventiva era comum durante todo este período.
Os tratamentos, na época, era, por muitas vezes, instituido pelo “Paterfamilias” (em tradução livre, “pai de família”, que na verdade tratava-se de um “líder comunitário”), por meio de conhecimentos adquiridos dos antepassados, repassados de pai a filho, a cada geração, onde recorria-se às virtudes terapêuticas atribuídas a “substâncias” possíveis de serem extraídas de coisas presentes na própria região (plantas, argilas, rochas, animais e até do próprio homem).
As técnicas da medicina “greco-romana” eram tão evoluídas, que muitos instrumentos pouco evoluíram até os dias atuais; é o que cita Maria A. São Marcos Souza (Mestre em estudos clássicos da Universidade de Aveiro, Portugal), em seu tratado “A Arte Médica em Roma Antiga nos ‘De Medicina’ de Celso” (Revista Ágora – Estudos Clássicos em Debate 7, 2005): “Um dos aspectos mais impressionantes da medicina antiga romana é a qualidade e complexidade das técnicas cirúrgicas aplicadas. Quer seja sinal da precocidade romana, quer da estagnação dos tempos seguintes, a verdade é que, até bem recentemente (como percebemos pela sofisticação dos instrumentos médico-cirúrgicos antigos, que vem sendo descobertos pela arqueologia), o design de muitos desses instrumentos permaneceu quase inalterado, assim como poucas evoluções sofreram várias das técnicas cirúrgicas de então”.
Celsus (ou Celso) foi um escritor romano do século I, ainda anterior a Galeno e Oribasius, autor de uma importante obra médica (enciclopédia), redescoberto por Papa Nicolau V, entre o ano 1435 a 1450. Em 1478, “De Medicina” foi uma das primeiras obras médicas publicadas, após o surgimento da imprensa. Esta obra evidencia o tamanho avanço das práticas médicas de seu tempo e mostra a estagnação a que passou os conhecimentos e práticas médicas nos séculos seguintes. Celso cita práticas retomadas pela “medicina moderna” e usadas atualmente, como a antissepsia de feridas e a cirurgia plástica, onde descreve técnicas de “reconstituição” do rosto com pele extraída de outras partes do corpo. Celso, apesar das limitações de sua época, deixa claro a compreensão dos processos inflamatórios e enumera os sinais principais da inflamação (calor, dor, vermelhidão e inchaço). “De Medicina” se divide em três partes, segundo o tipo de tratamento exigido por várias doenças: dietética, farmacêutica e cirúrgica, e inclui relatos de doenças cardíacas, insanidade, ligaduras para impedir o sangramento arterial e hidroterapia, por exemplo.
As descrições em “De Medicina” vão desde procedimentos simples, como técnicas de extração de dentes, amputações de membros em casos de gangrena ou o tratamento de fraturas ósseas, até operações mais complexas como a remoção de amígdalas ou de pólipos nasais, cirurgias de catarata, de hérnias, de varizes e de extração de cálculos urinários. Intervenções de carácter estético, citadas na enciclopédia, como as reconstituições em casos de mutilação de orelhas, nariz ou lábios são consideradas avançadas e sofisticadas demais para a época. Mas a história, citada por Oribasius, remonta ainda ao século III a.C., as complexas técnicas cirúrgicas de catarata, atribuídas a médicos gregos. No entanto, há evidencias históricas de que isto seja ainda mais antigo, oriunda da Índia antiga.
Devido a vários acontecimentos históricos, a ciência médica foi “jogada a segundo plano”. O uso da “magia” (simpatias, benzeduras) tomou lugar da ciência por um longo período, sendo que muitas dessas perdurou até o século XX, ou mesmo – incrivelmente – os dias atuais.
No passado, por muitas vezes, as pessoas atribuiam grandes propriedades (notadamente psicológico, um efeito placebo) às substâncias ou medicamentos comuns, conferindo-lhes atributos que, obviamente, um ensaio clínico randomizado jamais demonstraria. E o mesmo continua até os dias de hoje, por muitas substâncias, cujas crenças em suas virtudes e efeitos são tão claramente manipuladas através das mídias, com interesses puramente econômicos, que torna a crença na “magia” dessas substâncias, algo difícil de contornar. Nos últimos meses, temos presenciado isto de forma mais ampla e evidente, devido a fragilidade psicológica frente à pandemia. As pessoas começaram a buscar substâncias e “tratamentos” preventivos e terapias “milagrosas” de forma mais obstinada, pelo medo ou – puramente – inconscientemente manipuladas por uma acirrada disputa político-econômica.
A evolução na ciência médica trilha lado a lado com a crendice. E tudo piora pelo simples fato psicológico de que é mais fácil e prazeroso acreditar na mentira.